domingo, 26 de abril de 2009

PENÉLOPE

Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.

No palácio deserto ladra
o cão.
Um sibilo de flechas
devolve-me o passado.

Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).


O ciclo está completo
a espera acabada.


Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.



Myriam Fraga

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A Esfinge


Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me

No fundo não me importa
O enigma que proponho.

Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
Minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.


Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.


E por saber que a morte
É a última chave,
Adivinho-me nas vítimas
Que estraçalho.


Myriam Fraga
ESTÁTUA

Tudo são memórias,
Tatugens
Na carne.

Que fina erosão
Esculpe
Meus sentidos?

E em cada poro
Desenha
O peso exato
Da mão no meu vestido?

Myriam Fraga

quarta-feira, 22 de abril de 2009

CANÇÃO

Pus meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para meu sonho naufragar.


Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e meu navio chegue ao fundo
e meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas coordenadas,
meus olhos secos como pedras
e minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meirelles

segunda-feira, 20 de abril de 2009


I DREAMED A DREAM


Eu sonhei um sonho muito tempo atrás
Quando havia esperança e a vida valia a pena ser vivida
Eu sonhei que o amor nunca morreria
Eu sonhei que Deus perdoaria

Quando era jovem e destemido
Quando os sonhos eram feitos, usados e desperdiçados.
Não havia resgate a ser pago
Não havia canção não cantada
ou vinho não provado
Mas os trigres vem a noite
com suas vozes macias como de trovão
eles destroem suas esperanças
e transformam seu sonho em vergonha!

E ainda assim sonho que ele virá até mim
e que viveremos nossas vidas juntos
Mas há sonhos que não se realizam
E tempestades que não se acalmam

Eu tive um sonho que minha vida seria...
Tão diferente deste inferno que eu estou vivendo
Tão diferente agora do que parecia!
E agora a vida matou
o sonho que eu sonhei




Les Miserables

ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ.
DE ARIANA PARA DIONÍSIO

Por muitos e diversos motivos Hilda Hilst povoa meu lacunar coração, sua poesia "de Ariana para Dionísio" é uma obra prima inigualável quando se trata de descrever meu ser, minha alma e todas os seus vazios, porém sei que não é justo pedir para o poeta que seja sempre terra o que é celeste. Mas é sua poesia que me embala a cada trágico fim e a cada novo recomeço, de uma tentativa vã, a outra, mesmo que eu siga a olhar no espelho e a indagar o por que, este coração que se despedaça ainda indaga ao seu algoz: "por que recusas amor e permanência". Porém seu canto me consola nas tantas madrugadas em claro, sem sono, a deriva neste aquático jazigo, a clamar a tentar entender o por que me recusas suspenso em tuas águas. És tu e só tu que me entende pois sabes que é de poesia minha vida secreta. E para lhe fazer jus a orno com as cores de Klimt que por vezes parece querer resplandecer sua estrela, essa que é inteira prata dês mil sois.

CANÇÃO IX

“Conta-se que havia na China uma
mulher belíssima que enlouquecia
de amor todos os homens.
Mas certa vez caiu nas profundezas
de um lago e assustou os peixes.”



Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata

Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.
Hilda Hilst
CANÇÃO VII

É licito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprendem

Mas posso, encantada, se quiseres

Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,
A eloqüência da boca nos prazeres

E plantar no teu peito, prodigiosa
Um ciúme venenoso e derradeiro.


Hilda Hilst
CANÇÃO IV

Porque te amo
Deverias ao menos te deter
Um instante
Como as pessoas fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.

Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana Não essa que te louva
A cada verso Mas outra
Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente
E por isso talvez
Te aborreças de mim.


Hilda Hilst
CANÇÃO X

Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, Dionísio, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.


Hilda Hilst
CANÇÃO VIII

Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora

E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.

Hilda Hilst
CANÇÃO II


Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta.
Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.


E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando.
Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu


Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.



Hilda Hilst
CANÇÃO V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio
Se me amas, podes dizer que não.
Pouco me importa ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã.

A mim me importa,
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.

E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor




Hilda Hilst
CANÇÃO VI

Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.

Hilda Hilst

quinta-feira, 16 de abril de 2009

CANÇÃO III

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minha ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz de fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.

A minha casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta

Porque recusas amor e permanência?



Hilda Hilst

quarta-feira, 15 de abril de 2009

CANÇÃO I

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria O sumo do teu canto.
Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


Hilda Hilst

Eu queria ser lido pelas pedras


Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

"O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora."
Um dos livros mais lindos que já li, tem uma soberba perene e lirismo térreo, e é feito de descasos, descomeços e desconstruções solidas por se fragmentarem no ar, nada se mantem e por isso tudo é lirico belo e lacunar, desde o planger do menino a voz destroçado do trovador. Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Encomenda


Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.


Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.


Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta
ponha uma cadeira vazia.


Cecília Meireles
O ESPELHO

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.


Sylvia Plath

Aquático Jazigo


CANÇÃO IX


“Canta-se que havia na China uma mulher belíssima
que enlouquecia de amor todos os homens.
Mas, certa vez caiu nas profundezas de um lago
e assustou os peixes.”




Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não me deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
reexistida e exata

Apenas tu, dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas suas águas.


Hilda Hist

segunda-feira, 13 de abril de 2009




Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.



Fernando Pessoa, 1931.