quinta-feira, 28 de maio de 2009

Lapso da consciência entre ilusões, Fantasmas me limitam e me contêm. Dorme insciente de alheios corações, Coração de ninguém.


Fernando Pessoa, 6-1-1923
DOBRE

Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão
Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.




Fernando Pessoa, 1913
Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.




Fernando Pessoa, 1933

quarta-feira, 27 de maio de 2009

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.






Fernando Pessoa, 5-9-1933

quinta-feira, 21 de maio de 2009

EU

Como descrever-me sem soar falso, ou verdadeiro demais para ser compreendido, acho que a melhor maneira de me descrever não é pelo que sou, mas pelo que não sou, ou não pude ser, bem não pude ser o novo Fernando Pessoa, mesmo eu sendo assim por excelência um fingidor, porem faltou-me a mim esta fina flor do lacio a povoar meu coração, também não pude ser Salvador Dali, por imprudência do destino, que o matou no dia do meu sexto aniversario, também não pude ser Richard Wagner mesmo ele morrendo exactamente 100 anos e 10 dias antes do meu nascimento, já me perguntei se não seria eu sua Reencarnação desmedida nesta terra fria, porem diferente dele apenas amo a musica ela transpassa e repassa meu ser, porem não a crio (e não sei se por despeito ou coisa assim, mas ando a questionar a reencarnação).
E Neste desalento sem fim também não tive minha vida narrada por um conto de Edgar Alan Poe (uma injustiça injustificável), perdoada apenas pelo fato de saber que um dia minha vida virará o enredo de um filme de Lars von Trier, e que talvez eu seja escalado para um papel pequeno.
Sei que dentro de mim, a uma inquietude sem fim, um não me encaixar ou achar, e devido a isso o simples fato de que eu possa não ser daqui, já me passou pela cabeça milhares de vezes quantas noites infindas imaginando de onde vim e como vim parar aqui, mas tudo que pude imaginar já havia sido escrito anteriormente por Antoine De Saint, e me peguei choroso a esperar um garotinho de cabelos dourados voltar.
Mas talvez só talvez eu possa ser Florbela Espanca, pois"eu sou o que no mundo anda perdida(o)", sim perdido, pois nunca acho meu norte (ando querendo mais que nunca o norte), lembro vagamente do leste e oeste, vivos em mim apenas a cada nascer e por do sol ( sim ainda vejo o nascer e o por do sol.. creio que mais pelas desmazelas da vida ou que pelo acaso do destino, pois por ir dormir as 5 da madrugada e só sair de casa as 5 da tarde para minha caminhada diária quando o sol já esta se pondo). Mesmo assim e belo ver o sol nascer e morrer a cada dia, esta eterna efemeridade me encanta.
Mas tal qual Hilda Hilste "tenho meditado e sofrido", nestes últimos tempos por uma gama de razões que poderia como Penélope tecer e destecer para tentar me explicar, sem na verdade nada dizer, mas estaria tecendo uma mortalha para um amor perdido, tenho o dom de amar perdidamente o que passou certamente herdei este mal de um sábio e triste cancioneiro, pois como ele "Eu amo tudo o que foi Tudo o que já não é", e é deste amor desmedido que sofremos nossas dores, ah! Fernando como queria consolar tua pessoa, sei a dor de se oferecer por inteiro e quererem de ti só a metade.
Talvez eu também seja apenas um fingidor, que finge ser, estar, querer, deixar e amar. Busco tão desesperadamente o amor mas ao mesmo passo o impeço de chegar até mim, não sei se é medo de sofrer ou de ser feliz, mas mato em mim toda a possibilidade de amor, como uma esfinge, como já me acusava Miryam Fraga "Adivinho-me nas vítimas Que estraçalho".
Bem este sou eu este ser incompleto mas que é inteiro prata, dez mil sóis. E que fica a deriva na terceira margem do rio, sem nunca partir sem nunca chegar, vivendo a lutar contra a corrente, as vezes altivo as vezes destroçado, e tão oposto ao que queria ser. E nesta eterna busca por um cais, me clamando como eterno navegante, porem talvez eu não seja o navegante mas "canto da sereia esperando o naufrágio das embarcações."






Dionísio
"O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm."

Fernado Pessoa

quarta-feira, 20 de maio de 2009


"Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma - se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me."




Florbela Espanca

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Across the universe


Sons de risos, sombras de amor estão tocando meus ouvidos abertos
Me excitando e convidando Um amor incondicional sem limites
que brilha em minha volta como milhões de sóis
E me chamam para ir pelo universo.



The Beatles
I Want To Hold Your Hand

É, eu vou lhe dizer uma coisa
Acho que você vai entender
Quando eu disser o que é
Eu quero segurar sua mão
Eu quero segurar sua mão
Eu quero segurar sua mão

Por favor, me diga
Que você me deixará ser o seu homem,
E por favor, me diga
Que você me deixará
segurar a sua mão
Agora, deixe-me segurar sua mão
Eu quero segurar sua mão
E quando eu te toco me sinto feliz por dentro
É um sentimento tão forte que, meu amor,
Eu não consigo esconder
Eu não consigo esconder
Eu não consigo esconder

Você tem aquela coisa especial
Acho que você vai entender
Quando sinto aquela coisa especial
Eu quero segurar a sua mão
Eu quero segurar a sua mão
Eu quero segurar a sua mão

E quando eu te toco me sinto feliz por dentro
É um sentimento tão forte que, meu amor,
Eu não consigo esconder
Eu não consigo esconder
Eu não consigo esconder

Você tem aquela coisa especial
Acho que você vai entender
Quando sinto aquela coisa especial
Eu quero segurar a sua mão
Eu quero segurar a sua mão

Eu quero segurar a sua mão


The Beatles
If I fell

Se eu me apaixonar por você
Você prometeria ser verdadeira
E me ajudar a entender?

Porque eu já me apaixonei antes
E eu descobri que o amor era mais
que só mãos dadas

Se eu der meu coração
pra você,
Eu tenho que ter certeza
Desde o inicio
De que você
me amaria mais que ela

Se eu confiar em você,
Oh, por favor
Não corra e se esconda
Se eu te amar também,
Oh, por favor
Não fira meu orgulho, como ela

Porque eu não aguentaria esta dor
E eu
ficaria triste se nosso novo amor
Fosse em vão

Então eu espero que você veja
Que eu amaria te amar
E que ela vai chorar
Quando aprender que nós somos dois

Se eu me apaixonasse por você

The Beatles
I'll Be Back

Eu voltarei
Você sabe que se você
partir meu coração eu vou
Mas eu voltarei
Outra vez, pois lhe falei
uma vez antes do adeus
Mas eu voltei mais uma vez
Eu te amo tanto
Eu sou aquele que te quer
Sim, eu sou aquele que te quer

Você podia encontrar
algo melhor para fazer
Do que partir meu
Coração outra vez
Desta vez tentarei mostrar que
Não estou tentando fingir
Eu achei que você entenderia
Que se eu fugisse de você
Você iria me querer também
Mas eu tenho uma grande surpresa

Você podia encontrar
algo melhor para fazer
Do que partir meu Coração outra vez
Desta vez tentarei mostrar que
Não estou tentando fingir
Eu quero ir mas eu odeio te deixar
Você sabe que eu odeio te deixar,
Você, se você partir meu coração
eu vou Mas eu voltarei novamente


The Beatles

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Venha ver o pôr do Sol

ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.

- Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?

- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!

- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.

- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?

- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...

- E você acha que eu iria?

- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.

- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

- Mas eu pago.

- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.

- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse.

E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

- Ele é tão rico assim?

- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.

- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.

- Mais alguns passos...

- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

- Sua prima também?

- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

- Vocês se amaram?

- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o

- Eu gostei de você, Ricardo.

- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.- Esfriou, não? Vamos embora.- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?

- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

- E lá embaixo?

- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

- Todas estas gavetas estão cheias?

- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

- Vamos, Ricardo, vamos.

- Você está com medo?- Claro que não, estou é com frio.

Suba e vamos embora, estou com frio!Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.

- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.Ela sacudia a portinhola.

- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

- Boa noite, Raquel.

- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.

- Não, não...

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.

- Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

- Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

- NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.



Lygia Fagundes Telles

quinta-feira, 14 de maio de 2009

"São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão"



Vinícius de Moraes
Soneto de Maior Amor

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.




Vinícius de Morais
Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do meu amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes
Soneto da separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.




Vinícius de Moraes

quarta-feira, 13 de maio de 2009

"Versos! Versos! Sei lá o que são versos..
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!…"



Florbela Espanca
!

Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura,
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh’alma triste, dolorida e escura,
Minh’alma sem amor é cinza e pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!…
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre…
O instante que foge, voa, e passa…
Fiozinho de água triste…a vida corre…




Florbela Espanca

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Frêmito

Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas…

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas…



Florbela Espanca

domingo, 10 de maio de 2009

Idade do Céu

Não somos mais Que uma gota de luz Uma estrela que cai Uma fagulha tão só Na idade do céu...

Não somos o Que queríamos ser Somos um breve pulsar Em um silêncio antigo Com a idade do céu...

Calma! Tudo está em calma Deixe que o beijo dure Deixe que o tempo cure Deixe que a alma Tenha a mesma idade Que a idade do céu...

Jorge Drexler

sábado, 9 de maio de 2009


Lama

Não, não dê mais tantas voltas não
Se chicoteia assim por qualquer perdão
Todo esse teatro não impressiona
Por maior que seja sua recompensa

Não se importe tanto assim
Com sua imagem decadente enfim
Nada adianta depois se lamentar
Por maior que seja sua displicência

Volta ou vai embora meu amor
Sem ameaças ensaiadas na frente do espelho
O caminho mais fácil
Nem sempre é melhor que o da dor

Dê uma chance pra vida te mostrar
Um jeito menos doloroso de se despedir
Não seja assim tão duro amor com as palavras
Lave bem as suas mãos antes de se decidir
Tira essa lama das botas
Antes de me dar as costas

Não, não dê tantas voltas não
Se chicoteia assim por qualquer perdão
Todo esse teatro não impressiona
Por maior que seja sua recompensa

Não se importe tanto assim
Com sua imagem decadente enfim
Nada adianta depois se lamentar
Por menor que seja sua displicência

Volta ou vai embora meu amor
Sem ameaças ensaiadas na frente do espelho
O caminho mais fácil
Nem sempre é melhor que o da dor

Dê uma chance pra vida te mostrar
Um jeito menos doloroso de se despedir
Não seja assim tão dura com as palavras
Lave bem as suas mãos antes de se decidir
Tira essa lama das botas
Antes de me dar as costas.


Meg Stock

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A Seta e o Alvo

Eu falo de amor à vida,
Você de medo da morte.
Eu falo da força do acaso
E você de azar ou sorte.

Eu ando num labirinto
E você numa estrada em linha reta.
Te chamo pra festa,
Mas você só quer atingir sua meta.
Sua meta é a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu olho pro infinito
E você de óculos escuros.
Eu digo: "Te amo!"
E você só acredita quando eu juro.

Eu lanço minha alma no espaço,
Você pisa os pés na terra.
Eu experimento o futuro
E você só lamenta não ser o que era.
E o que era?
Era a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu grito por liberdade,
Você deixa a porta se fechar.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar.

Eu corro todos os riscos,
Você diz que não tem mais vontade.
Eu me ofereço inteiro
E você se satisfaz com metade.

É a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa não te espera!
Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?

Sempre a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?


Paulinho Moska

quinta-feira, 7 de maio de 2009


Nunca entregues todo o coração, não vale a pena.
Aquele que fez isto sabe o quanto custa,
Pois entregou todo o coração e perdeu.


William Butler Yeats

Com o tempo a sabedoria


Embora muitas sejam as folhas,
a raiz é só uma;

Ao longo dos enganadores
dias da mocidade,

Oscilaram ao sol
minhas folhas,
minhas flores;

Agora posso murchar no coração da verdade




William Butler Yeats
O Torrão e o Seixo

"O Amor jamais a si quer contentar,
Não tem cuidado algum com o que é seu;
Sacrifica por outro o bem-estar,
E, a despeito do Inferno, erige um Céu."

Esse era o canto de um Torrão de Terra,
Pisado pelas patas da boiada;
Mas o Seixo, nas águas do regato,
Modulava esta métrica adequada:

"O Amor somente a si quer contentar,
Atar alguém ao próprio gozo eterno;
Sorri quando o outro perde o bem-estar,
E, a despeito do Céu, ergue um Inferno."

William Butler Yeats
Efêmero

"Os teus olhos, outrora nunca cansados dos meus,
Ocultam-se tristes sob pálpebras cerradas
Porque o nosso amor declina."
E ela disse:
"Embora o nosso amor esteja em declínio, fiquemos
Mais uma vez junto à solitária margem do lago
Unidos nessa hora de tranquilidade
Quando a cansada e infeliz criança, a Paixão, adormece.
Como parecem distantes as estrelas, e distante
O nosso primeiro beijo e tão velho o meu coração!"
Pensativos caminharam por entre as folhas murchas
Enquanto ele, tomando-lhe a mão, lentamente respondeu:
"A paixão muitas vezes cansou os nossos corações inconstantes."


Os bosques cercavam-nos e as folhas amarelas
Caíam como débeis meteoros na escuridão e um coelho
Velho e aleijado passou de repente a coxear pela vereda;
O Outono tombava sobre ele. E agora eles ali estavam
Uma vez mais na solitária margem do lago:
Voltando-se, viu que ela lançara folhas mortas,
Colhidas em silêncio e orvalhadas como os seus olhos,
Sobre o seio e os cabelos.

"Oh, não lamentes", disse ele,
"O nosso cansaço; outros amores nos aguardam;
Odeia e ama ao longo das serenas horas.
Aguarda-nos a eternidade; as nossas almas
São amor e um contínuo adeus."



William Butler Yeats

domingo, 3 de maio de 2009

Eu sou o canto das sereias esperando o naufragio das embarcações...

sábado, 2 de maio de 2009

DO DESEJO

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro.

E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo.
Obriga-me.



Hilda Hilst

Do Desejo - 1992